As melhores aberturas: “A metamorfose”, de Kafka.

Um inseto monstruoso.

A literatura nos oferece inúmeros prazeres e um deles é a leitura das primeiras linhas de cada livro, as suas aberturas. Nessa série de publicações vamos selecionar algumas aberturas de obras clássicas, começando pela novela “A metamorfose”, de Franz Kafka, em que o escritor narra, nas dez primeiras linhas, a inusitada situação do personagem Gregor Samsa, que acorda de “sonhos intranquilos” e se vê transformado em um inseto monstruoso.

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos,  encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como uma couraça e, ao se levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos”. (Kafka, Franz. – Essencial Franz Kafka (A Metamorfose, p. 209). Penguin Classics – Companhia das Letras, 2011)

O início da novela A Metamorfose é, segundo o professor Tomaz Amorim, “uma das aberturas de texto mais importantes da história da literatura”. Mas Kafka tem outras aberturas impactantes. No livro O Processo, por exemplo, a abertura narra a detenção do bancário Joseph K., o que dá início a uma angustiante e infrutífera peregrinação por sufocantes labirintos judiciais. “Alguém certamente havia caluniado Josef K, pois numa manhã ele foi detido sem ter feito mal algum“.

Na Carta ao pai, Kafka escreve: “Querido pai. Tu me perguntaeste recentemente por que afirmo tem medo de ti”.

KAFKA

Quase desconhecido em vida, o autor de O Processo, Na colônia penal, A metamorfose e outras obras-primas da prosa universal é considerado hoje – ao lado de Proust e Joyce – um dos maiores escritores do século XX.

Modesto Carone, escritor e tradutor da obra de Kafka, publicou a seguinte biografia do escritor tcheco:

“Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883, na cidade de Praga, Boêmia (hoje República Tcheca), então pertencente ao Império  Austro-Húngaro. Era filho mais velho de Hermann Kafka, comerciante judeu, e de sua esposa Julie, nascida Löwy. Estudou em sua cidade natal, formando-se em direito em 1906. Trabalhou como advogado, a princípio na companhia particular Assicurazioni Generali e depois no Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho. Duas vezes noivo da mesma mulher, Felice Bauer, não se casou. Em 1917, aos 34 anos de idade, sofreu a primeira hemoptise de uma tuberculose que iria matá-lo sete anos mais tarde.

Alternando temporadas em sanatórios com o trabalho burocrático, nunca deixou de escrever, embora tenha publicado pouco e, já no fim da vida, pedido inutilmente ao amigo Max Brod que queimasse seus escritos. Viveu praticamente a vida inteira em Praga, exceção feita ao período de novembro de 1923 a março de 1924, passado em Berlim, longe da presença esmagadora do api, que não reconhecia a legitimidade de sua carreira de escritor.

A maior parte de sua obra – contos, novelas, romances, cartas, diários, todos escritos em alemão – foi publicada postumamente. Kafka faleceu em um sanatório perto de Viena, Áustria, no dia 3 de junho de 1924, um mês antes de completar 41 anos de idade. Seu corpo foi enterrado no cemitério judaico de Praga. Quase desconhecido em vida, o autor de O Processo, Na colônia penal, A metamorfose e outras obras-primas da prosa universal é considerado hoje – ao lado de Proust e Joyce – um dos maiores escritores do século XX.

Livros e contos de Franz Kafka

Cenas de um Casamento no Campo (1907)
Considerações (1908)
Aeroplano em Brescia (1909)
Amerika (1910,1927)
O Veredicto (1912)
A Metamorfose (1912, 1915)
A Sentença (1912, 1916)
Meditação (1913)
Contemplação: O Foguista (1913)
Diante da Lei (1914, 1915)
A Colônia Penal (1914, 1919)
O Processo (1914,1925)
Um Relatório para a Academia (1917)
A Preocupação de um Pai de Família (1917)
A Muralha da China (1917, 1931)
Carta ao Pai (1919)
Um Médico Rural (1919)
Poseidon (1920)
Noites (1920)
Sobre a Questão das Leis (1920)
Primeiro Sofrimento (1921)
Cartas a Milena (1920, 1923)
Investigações de um Cão (1922)
Um Artista da Fome (1922, 1924)
O Castelo (1922, 1926)
Uma Pequena Mulher (1923)
A Construção (1923)
Josefina, a Cantora ou O Povo dos Ratos (1924)
Sonhos

Referências

  • Anders, Günther. Kafka: pró & contra. Tradução, posfácio e notas: Modesto Carone. São Paulo, Cosacnaify.
  • Carone, Modesto. Essencial Fraz Kafka – seleção, introdução e tradução de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
  • _____ Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • Kafka, Franz. O processo. Traduão e posfácio de Modesto Carone. Rio de Janeiro, O Globo, 2003
  • _____. Carta ao pai. Tradução de Marcelo Backes, Porto Alegre: L&PM, 2009
  • Konder, Leandro. Kafka – Vida e Obra. Rio de Janeiro: Edotora Paz e Terra, 1979.

Lendo “O Banquete”, de Platão

Temos um grupo de leitura, em atividade há vários anos, e que neste momento está se dedicando à leitura do livro “O Banquete”, de Platão. Depois de navegar por muitos anos no mundo do Pathwork, com a escritora Eva Pierrakos, vamos agora fazer um estudo filosófico, com Platão. Uma mudança necessária, que vai ampliar os horizontes do grupo.

O Grupo do Livro, em 2023: Cristina, Marilda, Nilza Marta, Cidinha, Eurípedes, Elzira, Larice, Karina e Luiz Carlos.

O BANQUETE

O Banquete, segundo a apresentação da Editora 34, “é um dos diálogos mais célebres de Platão (428-347 a.C.) e, junto com o Fedro, trata da natureza multifacetada do Amor. Ambientado durante um jantar oferecido pelo poeta trágico Agatão, em comemoração à vitória que obtivera num festival dramático, o Banquete põe em cena Sócrates, o médico Erixímaco, o comediógrafo Aristófanes e outros convivas enfrentando-se na seguinte competição: cada um deve fazer um discurso de elogio à figura contraditória de Eros, o deus que é capaz de domar a todos, mortais e imortais“.

A narrativa se desenrola durante um simpósio, uma festa onde os participantes bebem vinho e compartilham discursos sobre o amor. Cada pessoa presente faz um discurso enaltecendo o amor, apresentando diferentes perspectivas sobre o tema.

Os discursos são marcados pela diversidade de opiniões. Alguns personagens defendem a visão de que o amor é um desejo físico e sensual, enquanto outros veem o amor como uma conexão emocional e espiritual. Os discursos variam em estilo e conteúdo, apresentando mitos e lendas, alusões poéticas e argumentos filosóficos.

O ponto culminante do diálogo ocorre quando Sócrates, um dos personagens centrais, conta a história do amor através do ensinamento da sacerdotisa Diotima. Segundo ela, o amor é um desejo de alcançar a imortalidade e a sabedoria. É uma força motivadora que nos impulsiona a buscar a perfeição e a transcendência.

Ao longo do diálogo, Platão também aborda a ideia de amor platônico, que é uma forma de amor idealizada e desprendida dos desejos físicos. Para Platão, o amor verdadeiro não é apenas uma atração pelo corpo, mas uma aspiração pela beleza eterna e pela busca do conhecimento.

No final do banquete, o filósofo Alcibíades interrompe as discussões e faz um discurso em homenagem a Sócrates, expressando sua admiração e amor pelo filósofo. O discurso de Alcibíades destaca a importância da filosofia e a figura inspiradora de Sócrates como um exemplo de amor e sabedoria.

Em “O Banquete”, Platão apresenta diversas reflexões sobre o amor e a natureza humana, fornecendo diferentes perspectivas filosóficas para a compreensão desse tema complexo. O livro convida os leitores a refletir sobre a natureza do amor e a busca da sabedoria e da transcendência como aspectos fundamentais da existência humana.

QUEM PARTICIPA DO BANQUETE

No diálogo “O Banquete” de Platão, os principais participantes do banquete e autores dos discursos são:

  1. Fedro: Ele faz o primeiro discurso sobre o amor, enfatizando sua importância e poder. Fedro argumenta que o amor inspira coragem e virtude.
  2. Pausânias: Ele apresenta o segundo discurso, dividindo o amor em dois tipos: o amor vulgar e o amor celeste. Pausânias discute as diferentes formas de amor e defende que apenas o amor virtuoso é digno de elogio. Pausânias, que também é mencionado no Protágoras (Prot., 315d), é um dos oradores do rememorado banquete de celebração à vitória de Agatão. Ele é citado como sendo oriundo da polis de Cerames, descrito como amante de Agatão, bem mais velho que seu amado, um advogado defensor da pederastia como elemento constitutivo da cultura na Grécia antiga e discípulo do sofista Pródico
  3. Erixímaco: O terceiro discurso é realizado por Erixímaco, que explora o amor sob uma perspectiva médica. Ele discute como o amor afeta a saúde e o equilíbrio do corpo e da alma.
  4. Aristófanes: Aristófanes é um conhecido comediante ateniense que faz o quarto discurso. Sua abordagem é mitológica e sugere que os seres humanos originalmente eram seres andróginos, com duas cabeças e corpos juntos. Eles foram divididos e, desde então, o amor é uma busca pela união perdida.
  5. Agatão: O quinto discurso é realizado por Agatão, um poeta trágico. Seu discurso é altamente elogioso e idealiza o amor como uma divindade, associando-o à beleza, à bondade e ao sucesso.
  6. Sócrates: Embora Sócrates não seja inicialmente um dos discursantes, ele ocupa um papel central no diálogo. É através de seu relato do ensinamento de Diotima, uma sacerdotisa, que se desenvolve o discurso mais famoso e abrangente sobre o amor. Sócrates apresenta o amor como uma busca pela beleza e sabedoria.

Além desses discursos, Alcibíades interrompe o banquete no final do diálogo para expressar seu amor e admiração por Sócrates, mas não apresenta um discurso estruturado sobre o tema do amor.

Código de Ética dos Índios Norte-Americanos

Aqui & agora

Levante com o Sol para orar.
Ore sozinho. Ore com freqüência.
O Grande Espírito o escutará, se você ao menos, falar.

Seja tolerante com aqueles que estão perdidos no caminho.
A ignorância, o convencimento, a raiva, o ciúme e a avareza,
originam-se de uma alma perdida.
Ore para que eles encontrem o caminho do Grande Espírito.

Procure conhecer-se, por si mesmo.
Não permita que outros façam seu caminho por você.
É sua estrada, e somente sua.
Outros podem andar ao seu lado, mas ninguém pode andar por você.

Trate os convidados em seu lar com muita consideração.
Sirva-os o melhor alimento, a melhor cama
e trate-os com respeito e honra.

Não tome o que não é seu.
Seja de uma pessoa, da comunidade,
da natureza, ou da cultura.
Se não lhe foi dado, não é seu.

Respeite todas as coisas que foram colocadas sobre a Terra.
Sejam elas pessoas, plantas…

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O alquimista, de Rembrandt

Rembrandt, pintor holandês, é autor do quadro Fausto, também conhecido como O Erudito, ou O Alquimista. Sobre esta obra, que mostra um homem de ciência contemplando um misterioso círculo de luz (o Livro da Luz), Goethe escreveu:

“Ah, como à vista disto todos os meus sentidos se sobressaltam! Sinto a jovem e santa volúpia da vida borbulhar nos meus nervos e nas minhas veias. Era um deus aquele que traçou esse sinal que apazigua a vertigem da minha alma, que enche de júbilo o meu pobre coração e, num impulso misterioso, desvenda à minha volta as forças da natureza? Serei eu um deus? Tudo se torna tão claro para mim; vejo nestes simples traços a natureza revelar-se para a minha alma. Agora, pela primeira vez, reconheço a verdade desta palavra do Sábio: o mundo dos espíritos não está fechado! O teu sentido é obtuso, o teu coração está morto. De pé! Banha, ó Adepto da Ciência, o teu peito, ainda envolvo por um véu terrestre, nos esplendores do dia que nasce”.

OS ESPLENDORES DO DIA QUE NASCE

É interessante ver a observação de Goethe sobre “os esplendores do dia que nasce”. O escritor sugere que a contemplação do sol nascente produz um efeito de purificação, de limpeza, de rompimento do véu terrestre. Ao que parece, não é um movimento simplesmente físico, material, de efeitos apenas no corpo humano, como, por exemplo, a absorção da vitamina D. É mais do que isso: o efeito desta contemplação (que é uma forma superior de usar a visão) tem uma natureza claramente espiritual. O sol, com os seus seres espirituais, não transmite apenas luz e calor, mas também sabedoria, equilibrio e outras virtudes que podem aprimorar o espírito que habita o homem.

Kalil Gibran, na poesia O Louco, diz que o louco ficou assim quando, depois de perder as suas máscaras, o sol beijou pela primeira vez a sua face nua. Diz o poema: “Assim me tornei louco. / E encontrei tanto liberdade / como segurança em minha loucura; a liberdade da solidão e a segurnaça de não ser compreendido / pois aquele desigual que nos compreende escraviza alguma coisa em nós”. Aqui o sol trouxe liberdade e segurança.

Referência

DUMAS, François Ribadeau. A luz espiritual e a iluminação. O enigma da luz, fonte da vida interior e do conhecimento. Tradução de Maria Elizabeteh Leuba Salum. São Paulo. Editora Pensamento, 1993, p. 114.

Juiz aplica nova Lei de Improbidade e absolve réu em Anápolis

O juiz da Vara da Fazenda Pública Municipal de Anápolis, Carlos Eduardo Rodrigues de Souza, considerando as modificações introduzidas pela recente Lei n.º 14.230/21, bem como a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 843989, julgou improcedente ação de improbidade proposta pelo Ministério Púbico Estadual em desfavor do réu Sidney Pontes Ribeiro, que o exerceu o cargo de Gestor da CMTT – Companhia Municipal de Trânsito e Transporte de Município de Anápolis, no ano de 2011, na gestão do ex-prefeito Antônio Gomide.

A ação foi proposta pelo Ministério Público Estadual, que atribuiu ao réu ato de improbidade administrativa consistente na dispensa de licitação para viabilizar a contratação precária da empresa ELISEU KOPP E CIA  para prestar os serviços de locação, instalação, gerenciamento e manutenção do sistema integrado de suporte à gestão de trânsito da cidade de Anápolis.

A ação, cuja defesa foi conduzida pelo advogado Pedro Ivo Duarte Mendes, do Escritório Duarte Mendes, em Anápolis,  foi julgada improcedente porque, segundo o Juízo, “não ficou comprovado nos autos que tenha atuado com dolo inequívoco para gerar prejuízo ao Erário quando optou pela dispensa de licitação.” Também foi descartada a alegação de que o réu, atuando como gestor, teria causado danos ao erário. A sentença foi prolatada em 16/9/22, no processo 0085921.58.2015.8.09.0006.

A aplicação retroativa da nova Lei de Improbidade Administrativa

Está em vigor a nova de Lei Improbidade Administrativa – Lei nº 14.230, de 26 de outubro de 2021 – de larga aplicação no serviço público, atingindo um número crescente de servidores e agentes políticos.  A nova lei trouxe modificações importantes em relação ao regramento anterior, previsto na antiga Lei  nº  8.429, de 2 de junho de 1992, entre as quais a exigência da demonstração de que o agente público tenha agido com dolo, isto é, com a intenção clara de se locupletar ou de causar dano ao erário, o que não ocorria na lei anterior.

Diante desse novo quadro, cresce o interesse pela posição dos tribunais, quanto à aplicação retroativa da nova lei, o que levaria à extinção de centenas de ações em curso, onde não houve a comprovação de dolo do agente público. A jurisprudência ainda é oscilante, embora se perceba uma tendência a considerar que a nova lei tem sim aplicação retroativa.

Para dirimir a questão, o Supremo Tribunal Federal, em decisão adotada no adotada no mês de fevereiro deste ano, afetou o ARE 843.989 como Tema (1.199) representativo de repercussão geral a fim de dirimir a controvérsia sobre a retroatividade das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, em especial quanto a necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa,  e também para definir quanto  a aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente. Em razão da afetação, o ministro Alexandre de Morais determinou a suspensão dos Recursos Especiais  em curso, que tratam da questão suscitada.

EM GOIÁS

Em julgamento recente, o Tribunal de Justiça de Goiás, julgando a Ação Civil Pública nº 5435922-64, ajuizada em 2018, determinou a aplicação retroativa da nova lei. O acordão, com o voto do Relator, deverá ser publicado nos próximos dias.

O que é o saber?

Teeteto é um diálogo socrático[1] que integra a obra platônica[2], escrito em 369 a.C e tem como tema a natureza do conhecimento ou do saber. Pertence às obras da juventude de Platão, sendo considerado o último diálogo socrático. Tem como personagens o filósofo Sócrates, o professor, matemático e astrônomo Teodoro de Cirene e o jovem Teeteto de Atenas, o melhor aluno de Teodoro e que, mais tarde, foi um dos principais geômetras do seu tempo, segundo as anotações de Koyré[3].

Este trabalho integra a disciplina TÓPICOS ESPECIAIS EM FILOSOFIA ANTIGA, ministrada pela professora Maria Inês Senra Anachoreta, no Curso de Especialização em Filosofia Antiga, da PUC/RIO. O objetivo do curso é o de examinar o problema do conhecimento, a partir do diálogo Teeteto e de suas possíveis implicações com o debate acerca do desenvolvimento da chamada “Teoria das Ideias”. Neste primeiro bloco, vamos examinar as passagens 142a a 147d, que corresponde a parte introdutória do diálogo.

A passagem selecionada inclui a apresentação dos personagens que participarão do diálogo – Sócrates, Teodoro e Teeteto, homens voltados para a filosofia e a ciência – e a revelação do tema central do diálogo[4], que é a investigação sobre o que é o saber, o que é o conhecimento.

O professor José Santos Trindade, na Introdução do Teeteto, publicada na 4ª edição da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, sugere que, para a compreensão do diálogo platônico, há que realizar duas tarefas complementares: um exame do seu conteúdo e estrutura, aliada a uma integração do texto ao Corpos platônico, mediante a exploração das suas relações temáticas com as outras obras.

Mas, além do exame do seu conteúdo e da relação com outras obras de Platão, é preciso notar que o texto contém um pano de fundo e algumas camadas de informações, no nível filosófico e histórico, que auxiliam na sua compreensão. Platão não escreveu nada aleatório; a escolha dos personagens, os lugares, as circunstâncias, tudo tem um sentido, um valor para o entendimento da obra.

Alguns exemplos: a presença do filósofo Euclides de Megara, para quem o livro foi lido pelo escravo alfabetizado; o ambiente histórico: Teeteto volta da guerra, ferido e doente, o que nos remete ao fim do Século de Péricles, à Guerra do Peloponeso, à bela Atenas de 399 a.C, agora vencida, assassinada e dilacerada[5]; a referência aos poderes proféticos de Sócrates (Teeteto viria a ser notável, se chegasse à idade madura); a presença no diálogo de Teodoro de Cirene e do seu aluno Teeteto, matemáticos, geômetras, homens de ciências, preparados para discutir o que é o saber; a descrição dos talentos de Teeteto – (rápido a aprender, gentil, de boa memória e corajoso), que nos traz a “imagem do filósofo”, entre outras referências.

Por certo que mais importante do que este pano de fundo e estas camadas de informações, é o fato de que o bloco ora examinado, e que corresponde à introdução do diálogo, indica o tema central da obra, em torno do qual vai se desenvolver a discussão filosófica.

“O que é o saber?”  Trata-se de um tema dos mais relevantes e que vai estar presente em outros pontos do Corpus platônico, como, por exemplo, na relação com a Teoria das Formas e no debate com os sofistas, a partir das concepções atribuídas a Protágoras e a Heráclito, sobre a verdade. A pergunta de Sócrates não tem uma resposta definitiva, o diálogo é aporético. As três respostas de Teeteto são refutadas. Embora Platão tenha dedicado toda a sua obra à investigação da natureza da sabedoria e das vias para a atingir, só no Teeteto o filósofo se debruça exclusivamente sobre o tema[6].

Referências

Koyré, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. 2ª ed. Editorial Presença, Lisboa.

Mossé, Jeanne Claude. O processo de Sócrates. Jorge Zahar Editor, 1990.

Platão. Teeteto. Tradução deAdriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Prefácio e Introdução deJosé Trindade Santos. 4ª Ed. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 2015

Santos, José Trindade. Para ler Platão. Alma, cidade, cosmo. Tomo II. Coleção Estudos Platônicos. Edições Loyola, 2009.


[1] Chamam-se “socráticos” os diálogos da juventude e da maturidade de Platão. Nesses, Sócrates desempenha o papel central, o problema discutido é habitualmente um problema moral e, geralmente, esses diálogos não se “resolvem” numa conclusão positiva. (Koyré, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. Editorial Presença, 2 ed.)

[2] A obra de Platão inclui, segundo José Trindade Santos, in Platão, A construção do conhecimento, PAULUS), 26 ou 27 diálogos, alguns dos quais não tem a sua autenticidade comprovada. São eles, em ordem cronológica: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton, Fédon, Crátilo, Teeteto, Sofista, Político, Parmênides, Filebo, O Banquete, Fedro, Alcebíades I, Alcebíades II, Hiparco, Amantes Rivais, Teages, Cármides, Laques, Lísis, Eutidemo, Protágoras, Górgias, Mênon, Hípias menor, Hípias maior, Íon, Menexêno, Clitofon, A República, Timeu, Crítias, Minos, Leis, Epínomis e Epístolas (Sétima Carta).

[3] Koyré, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. Editorial Presença, 2 ed.

[4] O diálogo aconteceu no ano de 399 a.C., conforme de deduz do último parágrafo do livro (210d), em que Sócrates anuncia que vai ao Pórtico ver a acusação formulada por Meleto, contra si. “Ora bem, agora tenho de comparecer diante do Pórtico do Rei para me confrontar com a acusação que Meleto apresentou contra mim. Mas amanhã de manhã cedo, Teodoro, regressaremos aqui de novo”.

[5] “Atenas em 399 a.C: uma cidade vencida, assassinada e dilacerada”. Esta expressão é utilizada pela historiadora Jeanne Claude Mossé, no livro “O processo de Sócrates”, Jorge Zahar Editor, 1990.

[6] É-lhe atribuída a composição de 26 diálogos e um discurso (a Apologia de Sócrates), nos quais
argumenta sobre temas de todas as disciplinas filosóficas – Ética, Política, Estética, Epistemologia, Lógica, Ontologia, Cosmologia, Psicologia -, além de ter ainda tratado questões relevantes de Filosofia da Ane, Filosofia da Religião e Retórica. (Teeteto, 4ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Nota da Editora).

Os conselhos e as indicações do professor Porchat


Cartaz do evento “Ceticismo, Filosofia e História da Filosofia: Homenagem a Oswaldo Porchat”, realizado em de 13 a 16 de agosto de 2018, sob a coordenação do professor Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho, do Departamento de Filosofia-USP

Em palestra proferida na abertura do XIX Encontro de Graduação em Filosofia da USP, organizado em 2016 pelos alunos do curso de Filosofia da USP, com o título “Meu ceticismo”, o professor Oswaldo Porchat (1933/2017) ressaltou a importância de que estudantes se dediquem ao estudos dos grandes filósofos e indicou alguns nomes que considera essenciais.

Professor emérito da USP e da Unicamp, Oswaldo Porchat foi fundador do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE/Unicamp) e formou várias gerações de filósofos durante sua longa experiência docente. Formou-se pela USP em letras clássicas em 1956 e em filosofia pela Universidade de Rennes em 1959 e se doutorou em filosofia pela USP em 1967. Faleceu em 15 de outubro de 2017.

O professor Porchat publicou, entre outras obras, os livros A filosofia e a visão comum do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Em coautoria com Bento Prado Jr. e Tércio Sampaio Ferraz); Vida comum e ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1993. (2ª ed.); Ciência e dialética em Aristóteles. São Paulo: Unesp, 2001 e Rumo ao ceticismo (foto). São Paulo: Unesp, 2007.

As indicações

“Sempre defendi, nas muitas palestras que fiz, em várias cidades, a necessidade de um estudo sério dos grandes autores da história da filosofia. Até hoje, sendo embora um cético, penso que a leitura dos grandes autores representa um fator da maior importância na formação filosófica dos estudantes, porque é com eles, esforçando-nos por decifrar a sua genialidade criadora, que aprendemos a pensar com profundidade, ao organizar adequadamente nosso uso de conceitos filosóficos.

Evidentemente, não temos condições para o estudo aprofundado de todos eles. Entretanto, se filosofar é nossa vocação, é fundamental que nos esforcemos por conhecer bem alguns entre eles e sob este prisma importa menos quais sejam os filósofos escolhidos. Podemos estudar a fundo, por exemplo, Aristóteles, Espinoza e Bergson; esforçar-nos por decifrar, por exemplo, a ‘Metafísica de Aristóteles’, a ‘Ética’ de Espinoza” e ‘Matéria e Memória’, de Bergson. Mas poderíamos também estudar a fundo não estes autores e estas obras, mas os diálogos de Platão, ‘A Crítica da Razão Pura’ e a ‘Fenomenologia do Espírito’, de Hegel.

Obviamente que não estou excluindo que se faça leituras menos aprofundadas de outros filósofos. Mas um estudo ‘aproximado’ dos grandes filósofos exigirá por certo de nós uma considerável capacidade de filosofar”.

Estudando filosofia

A prof. Irley Franco, coordenadora do Curso de Especialização em Filosofia Antiga, da PUC/RIO.

Epicuro, filósofo grego (341 a.C./ 271 ou 270 a.C.), ensina que nunca é tarde para estudar filosofia. “Nunca é cedo nem tarde demais para cuidar da própria alma”.  Pois bem. Seguindo os conselhos do filósofo, decidi agora, já bem depois do meio-dia, estudar filosofia com mais seriedade e método. Sempre buscando, desde a juventude, uma melhor compreensão da vida e dos seus mistérios, percorri vários caminhos: a literatura, o direito, a religião, o esoterismo, colhendo uns poucos frutos esparsos.

Agora quero buscar a luz da filosofia, a luz da razão. Com a ingenuidade de quem está chegando ao mundo filosófico, cheio de expectativas, certo de que vai encontrar a verdade, a felicidade e outras maravilhas metafísicas, venho dando estes primeiros passos, gostando muito desse encontro. Depois de comprar um monte de livros, de perambular na internet, catando conceitos aqui e ali, encontrei um bom caminho: o Curso de Filosofia Antiga da PUC do Rio de Janeiro, onde estou matriculado desde o início deste semestre.

Trata-se de um curso de Especialização em Filosofia Antiga, com 360 horas, oferecido de forma virtual e ministrado sob a coordenação da professora Irley Franco, Doutora em Filosofia (1993) pela PUC/RIO, onde leciona desde 2002. Entre outros cargos, a professora Irley já atuou como diretora do Departamento de Filosofa da PUC/Rio (2008/2011) e foi uma das fundadoras do Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga da PUC/Rio, (NUFA[1]), em 1994, órgão que deu origem a este Curso de Especialização, bem como a outros cursos e grupos de pesquisa relacionados com a Filosofia Antiga, existentes na estrutura acadêmica faculdade.

Neste semestre estamos com quatro matérias. Com o professor Renato Matoso, coordenador de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, estamos, sob o título geral “A Física e a  Metafísica de Aristóteles”, dando os primeiros passos para conhecer Aristóteles, com a leitura da “Metafísica”,  uma obra que reúne doze livros, cuja primeira frase é a seguinte: “Todos os homens tendem, por natureza, ao saber.”

É o estudo do ser enquanto ser e as competências que lhe competem enquanto tal; o estudo da Teoria as Quatro Causas (material, formal, final e eficiente); o estudo do “primeiro motor imóvel”; o estudo da substância, da forma, da matéria e, ainda, do ato e potência. Uma aventura e tanto!

Prof. Renato Matoso: carregando o piano de Aristóteles.

Com o professor Marcus Reis Pinheiro, Professor Efetivo do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), estamos dando os primeiros passos na obra platônica, examinando  especialmente os diálogos da maturidade: o Fédon, O Banquete, o Fedro e vamos agora estudar alguns livros do livro “A República”, com ênfase para Teoria das Ideias de Platão.

A professora Julia Myara, doutoranda em História da Filosofia Antiga na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e co-fundadora do IPIA – Comunidade de Pensamento, está conduzindo o curso sobre os sofistas, com destaque para a importância e a influência de Protágoras e Górgias. O curso, pode-se dizer, integra o movimento filosófico contemporâneo que buscar redimir o prestígio dos sofistas.

Finalmente, com a professora Miriam Sutter Medeiros, Doutora em Língua e Literatura Latina (Letras Clássicas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, estamos estudando Mito e Filosofia. Um mar de conhecimentos: Homero, Hesíodo, a poesia lírica, a Guerra de Troia, Prometeu (que é o fio condutor do curso) e muitas outras maravilhas do mundo clássico grego.


[1] O Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga da PUC-Rio (NUFA) foi criado em 1994, como resultado de um projeto apoiado pelo CNPq, que tinha como objetivo promover, no meio universitário brasileiro, a pesquisa e a formação rigorosa de pesquisadores na área de filosofia antiga

A última árvore da Rua Dona Doca

Passei a infância na Rua Dona Doca. Dias felizes. Ali era o centro do universo  e as fronteiras eram a Praça Oeste, com os seus bares; a Praça das Mães, com seus comícios; a Mangueirinha, com seu futebol;  a Coréia, com os seus perigos; o Brejo, com suas trilhas e minas d’água; o campo do Haroldo, com mais futebol e, fechando o círculo, o Barranco, por onde passava o trem de ferro. Essa era a rua Dona Doca, onde surgiu a expressão eu era feliz e não sabia.

Naqueles dias da década de 60, a Dona Doca era assim meio distante do centro, meio periférica, não tinha asfalto, mas já contava com muitas casas. Uma rua pequena, curta, e a molecada conhecia cada casa, por dentro e por fora, o nome dos moradores e dos cachorros. Um deles era o Tupi.

Aos poucos a rua foi se urbanizando, recebeu asfalto, esgoto, água tratada, e em um belo dia do ano de 1978, foi inteiramente arborizada. Me lembro bem, foram plantadas sibipirunas, no ano em que o médico Henrique Santillo foi eleito para o Senado. Não sei por que fiz esta associação entre a arborização da rua e a eleição do senador.

As árvores cresceram, ficaram lindas. Um dia contemplando a copa daquelas árvores enfileiradas, geometricamente alinhadas, tive a impressão de estar diante de um caminho mágico para a Natureza. “Se seguirmos estas árvores, nesse seu trajeto aéreo, formado por suas copas, vamos para as matas, para as florestas, para o mundo encantado da Natureza”, foi o pensamento que me ocorreu em um momento assim de divagação. Voa pensamento!

Mas o tempo foi passando e as arvores foram desparecendo, umas morreram, outras foram cortadas e o fato é que, até esta semana, restava uma única árvore na Rua Dona Doca, na frente da casa do Valtinho, da Eletrônica Mundial. Não moro mais lá, mas semanalmente faço uma visita à minha irmã, a Nádia, e sempre que dava certo, deixava o carro na sombra desta única árvore, sempre ali, resistindo solitariamente, como o chefe Chingachgook, o último dos Moicanos.

Essa árvore linda, generosa, resistiu o quanto pôde à insensibilidade humana, ao desprezo que os homens têm pela Natureza. Uma luta inglória que chegou ao fim esta  semana: a árvore foi covardemente decepada e agora a Rua Dona Doca não tem mais árvores. Não tem mais a magia daquela única árvore, acabou a sua ligação com a Natureza. Agora é aquela rua desolada, encalorada, feia.

A morte desta árvore é simbólica: representa bem os dias que estamos vivendo no Brasil. Tempos de insensibilidade, de violência, de autoritarismo. Um símbolo apenas, porque no mundo real, na vida como ela é, tudo está bem pior: o Pantanal, a Amazônia, o Cerrado sofrem ataques violentos, está em curso uma devastação impiedosa, com máquinas, com fogo, com venenos, por todos ao meios. Uma tristeza os dias que estamos vivendo.