O que é o saber?

Teeteto é um diálogo socrático[1] que integra a obra platônica[2], escrito em 369 a.C e tem como tema a natureza do conhecimento ou do saber. Pertence às obras da juventude de Platão, sendo considerado o último diálogo socrático. Tem como personagens o filósofo Sócrates, o professor, matemático e astrônomo Teodoro de Cirene e o jovem Teeteto de Atenas, o melhor aluno de Teodoro e que, mais tarde, foi um dos principais geômetras do seu tempo, segundo as anotações de Koyré[3].

Este trabalho integra a disciplina TÓPICOS ESPECIAIS EM FILOSOFIA ANTIGA, ministrada pela professora Maria Inês Senra Anachoreta, no Curso de Especialização em Filosofia Antiga, da PUC/RIO. O objetivo do curso é o de examinar o problema do conhecimento, a partir do diálogo Teeteto e de suas possíveis implicações com o debate acerca do desenvolvimento da chamada “Teoria das Ideias”. Neste primeiro bloco, vamos examinar as passagens 142a a 147d, que corresponde a parte introdutória do diálogo.

A passagem selecionada inclui a apresentação dos personagens que participarão do diálogo – Sócrates, Teodoro e Teeteto, homens voltados para a filosofia e a ciência – e a revelação do tema central do diálogo[4], que é a investigação sobre o que é o saber, o que é o conhecimento.

O professor José Santos Trindade, na Introdução do Teeteto, publicada na 4ª edição da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, sugere que, para a compreensão do diálogo platônico, há que realizar duas tarefas complementares: um exame do seu conteúdo e estrutura, aliada a uma integração do texto ao Corpos platônico, mediante a exploração das suas relações temáticas com as outras obras.

Mas, além do exame do seu conteúdo e da relação com outras obras de Platão, é preciso notar que o texto contém um pano de fundo e algumas camadas de informações, no nível filosófico e histórico, que auxiliam na sua compreensão. Platão não escreveu nada aleatório; a escolha dos personagens, os lugares, as circunstâncias, tudo tem um sentido, um valor para o entendimento da obra.

Alguns exemplos: a presença do filósofo Euclides de Megara, para quem o livro foi lido pelo escravo alfabetizado; o ambiente histórico: Teeteto volta da guerra, ferido e doente, o que nos remete ao fim do Século de Péricles, à Guerra do Peloponeso, à bela Atenas de 399 a.C, agora vencida, assassinada e dilacerada[5]; a referência aos poderes proféticos de Sócrates (Teeteto viria a ser notável, se chegasse à idade madura); a presença no diálogo de Teodoro de Cirene e do seu aluno Teeteto, matemáticos, geômetras, homens de ciências, preparados para discutir o que é o saber; a descrição dos talentos de Teeteto – (rápido a aprender, gentil, de boa memória e corajoso), que nos traz a “imagem do filósofo”, entre outras referências.

Por certo que mais importante do que este pano de fundo e estas camadas de informações, é o fato de que o bloco ora examinado, e que corresponde à introdução do diálogo, indica o tema central da obra, em torno do qual vai se desenvolver a discussão filosófica.

“O que é o saber?”  Trata-se de um tema dos mais relevantes e que vai estar presente em outros pontos do Corpus platônico, como, por exemplo, na relação com a Teoria das Formas e no debate com os sofistas, a partir das concepções atribuídas a Protágoras e a Heráclito, sobre a verdade. A pergunta de Sócrates não tem uma resposta definitiva, o diálogo é aporético. As três respostas de Teeteto são refutadas. Embora Platão tenha dedicado toda a sua obra à investigação da natureza da sabedoria e das vias para a atingir, só no Teeteto o filósofo se debruça exclusivamente sobre o tema[6].

Referências

Koyré, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. 2ª ed. Editorial Presença, Lisboa.

Mossé, Jeanne Claude. O processo de Sócrates. Jorge Zahar Editor, 1990.

Platão. Teeteto. Tradução deAdriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Prefácio e Introdução deJosé Trindade Santos. 4ª Ed. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 2015

Santos, José Trindade. Para ler Platão. Alma, cidade, cosmo. Tomo II. Coleção Estudos Platônicos. Edições Loyola, 2009.


[1] Chamam-se “socráticos” os diálogos da juventude e da maturidade de Platão. Nesses, Sócrates desempenha o papel central, o problema discutido é habitualmente um problema moral e, geralmente, esses diálogos não se “resolvem” numa conclusão positiva. (Koyré, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. Editorial Presença, 2 ed.)

[2] A obra de Platão inclui, segundo José Trindade Santos, in Platão, A construção do conhecimento, PAULUS), 26 ou 27 diálogos, alguns dos quais não tem a sua autenticidade comprovada. São eles, em ordem cronológica: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton, Fédon, Crátilo, Teeteto, Sofista, Político, Parmênides, Filebo, O Banquete, Fedro, Alcebíades I, Alcebíades II, Hiparco, Amantes Rivais, Teages, Cármides, Laques, Lísis, Eutidemo, Protágoras, Górgias, Mênon, Hípias menor, Hípias maior, Íon, Menexêno, Clitofon, A República, Timeu, Crítias, Minos, Leis, Epínomis e Epístolas (Sétima Carta).

[3] Koyré, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. Editorial Presença, 2 ed.

[4] O diálogo aconteceu no ano de 399 a.C., conforme de deduz do último parágrafo do livro (210d), em que Sócrates anuncia que vai ao Pórtico ver a acusação formulada por Meleto, contra si. “Ora bem, agora tenho de comparecer diante do Pórtico do Rei para me confrontar com a acusação que Meleto apresentou contra mim. Mas amanhã de manhã cedo, Teodoro, regressaremos aqui de novo”.

[5] “Atenas em 399 a.C: uma cidade vencida, assassinada e dilacerada”. Esta expressão é utilizada pela historiadora Jeanne Claude Mossé, no livro “O processo de Sócrates”, Jorge Zahar Editor, 1990.

[6] É-lhe atribuída a composição de 26 diálogos e um discurso (a Apologia de Sócrates), nos quais
argumenta sobre temas de todas as disciplinas filosóficas – Ética, Política, Estética, Epistemologia, Lógica, Ontologia, Cosmologia, Psicologia -, além de ter ainda tratado questões relevantes de Filosofia da Ane, Filosofia da Religião e Retórica. (Teeteto, 4ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Nota da Editora).

Os conselhos e as indicações do professor Porchat


Cartaz do evento “Ceticismo, Filosofia e História da Filosofia: Homenagem a Oswaldo Porchat”, realizado em de 13 a 16 de agosto de 2018, sob a coordenação do professor Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho, do Departamento de Filosofia-USP

Em palestra proferida na abertura do XIX Encontro de Graduação em Filosofia da USP, organizado em 2016 pelos alunos do curso de Filosofia da USP, com o título “Meu ceticismo”, o professor Oswaldo Porchat (1933/2017) ressaltou a importância de que estudantes se dediquem ao estudos dos grandes filósofos e indicou alguns nomes que considera essenciais.

Professor emérito da USP e da Unicamp, Oswaldo Porchat foi fundador do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE/Unicamp) e formou várias gerações de filósofos durante sua longa experiência docente. Formou-se pela USP em letras clássicas em 1956 e em filosofia pela Universidade de Rennes em 1959 e se doutorou em filosofia pela USP em 1967. Faleceu em 15 de outubro de 2017.

O professor Porchat publicou, entre outras obras, os livros A filosofia e a visão comum do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Em coautoria com Bento Prado Jr. e Tércio Sampaio Ferraz); Vida comum e ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1993. (2ª ed.); Ciência e dialética em Aristóteles. São Paulo: Unesp, 2001 e Rumo ao ceticismo (foto). São Paulo: Unesp, 2007.

As indicações

“Sempre defendi, nas muitas palestras que fiz, em várias cidades, a necessidade de um estudo sério dos grandes autores da história da filosofia. Até hoje, sendo embora um cético, penso que a leitura dos grandes autores representa um fator da maior importância na formação filosófica dos estudantes, porque é com eles, esforçando-nos por decifrar a sua genialidade criadora, que aprendemos a pensar com profundidade, ao organizar adequadamente nosso uso de conceitos filosóficos.

Evidentemente, não temos condições para o estudo aprofundado de todos eles. Entretanto, se filosofar é nossa vocação, é fundamental que nos esforcemos por conhecer bem alguns entre eles e sob este prisma importa menos quais sejam os filósofos escolhidos. Podemos estudar a fundo, por exemplo, Aristóteles, Espinoza e Bergson; esforçar-nos por decifrar, por exemplo, a ‘Metafísica de Aristóteles’, a ‘Ética’ de Espinoza” e ‘Matéria e Memória’, de Bergson. Mas poderíamos também estudar a fundo não estes autores e estas obras, mas os diálogos de Platão, ‘A Crítica da Razão Pura’ e a ‘Fenomenologia do Espírito’, de Hegel.

Obviamente que não estou excluindo que se faça leituras menos aprofundadas de outros filósofos. Mas um estudo ‘aproximado’ dos grandes filósofos exigirá por certo de nós uma considerável capacidade de filosofar”.

Estudando filosofia

A prof. Irley Franco, coordenadora do Curso de Especialização em Filosofia Antiga, da PUC/RIO.

Epicuro, filósofo grego (341 a.C./ 271 ou 270 a.C.), ensina que nunca é tarde para estudar filosofia. “Nunca é cedo nem tarde demais para cuidar da própria alma”.  Pois bem. Seguindo os conselhos do filósofo, decidi agora, já bem depois do meio-dia, estudar filosofia com mais seriedade e método. Sempre buscando, desde a juventude, uma melhor compreensão da vida e dos seus mistérios, percorri vários caminhos: a literatura, o direito, a religião, o esoterismo, colhendo uns poucos frutos esparsos.

Agora quero buscar a luz da filosofia, a luz da razão. Com a ingenuidade de quem está chegando ao mundo filosófico, cheio de expectativas, certo de que vai encontrar a verdade, a felicidade e outras maravilhas metafísicas, venho dando estes primeiros passos, gostando muito desse encontro. Depois de comprar um monte de livros, de perambular na internet, catando conceitos aqui e ali, encontrei um bom caminho: o Curso de Filosofia Antiga da PUC do Rio de Janeiro, onde estou matriculado desde o início deste semestre.

Trata-se de um curso de Especialização em Filosofia Antiga, com 360 horas, oferecido de forma virtual e ministrado sob a coordenação da professora Irley Franco, Doutora em Filosofia (1993) pela PUC/RIO, onde leciona desde 2002. Entre outros cargos, a professora Irley já atuou como diretora do Departamento de Filosofa da PUC/Rio (2008/2011) e foi uma das fundadoras do Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga da PUC/Rio, (NUFA[1]), em 1994, órgão que deu origem a este Curso de Especialização, bem como a outros cursos e grupos de pesquisa relacionados com a Filosofia Antiga, existentes na estrutura acadêmica faculdade.

Neste semestre estamos com quatro matérias. Com o professor Renato Matoso, coordenador de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, estamos, sob o título geral “A Física e a  Metafísica de Aristóteles”, dando os primeiros passos para conhecer Aristóteles, com a leitura da “Metafísica”,  uma obra que reúne doze livros, cuja primeira frase é a seguinte: “Todos os homens tendem, por natureza, ao saber.”

É o estudo do ser enquanto ser e as competências que lhe competem enquanto tal; o estudo da Teoria as Quatro Causas (material, formal, final e eficiente); o estudo do “primeiro motor imóvel”; o estudo da substância, da forma, da matéria e, ainda, do ato e potência. Uma aventura e tanto!

Prof. Renato Matoso: carregando o piano de Aristóteles.

Com o professor Marcus Reis Pinheiro, Professor Efetivo do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), estamos dando os primeiros passos na obra platônica, examinando  especialmente os diálogos da maturidade: o Fédon, O Banquete, o Fedro e vamos agora estudar alguns livros do livro “A República”, com ênfase para Teoria das Ideias de Platão.

A professora Julia Myara, doutoranda em História da Filosofia Antiga na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e co-fundadora do IPIA – Comunidade de Pensamento, está conduzindo o curso sobre os sofistas, com destaque para a importância e a influência de Protágoras e Górgias. O curso, pode-se dizer, integra o movimento filosófico contemporâneo que buscar redimir o prestígio dos sofistas.

Finalmente, com a professora Miriam Sutter Medeiros, Doutora em Língua e Literatura Latina (Letras Clássicas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, estamos estudando Mito e Filosofia. Um mar de conhecimentos: Homero, Hesíodo, a poesia lírica, a Guerra de Troia, Prometeu (que é o fio condutor do curso) e muitas outras maravilhas do mundo clássico grego.


[1] O Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga da PUC-Rio (NUFA) foi criado em 1994, como resultado de um projeto apoiado pelo CNPq, que tinha como objetivo promover, no meio universitário brasileiro, a pesquisa e a formação rigorosa de pesquisadores na área de filosofia antiga

Caminhar é uma atitude filosófica

O filósofo francês Frédéric Gros escreveu, em 2009, o livro “Caminhar , uma filosofia”.

Caminhar é uma atitude filosófica. Ou melhor, é um hábito que favorece a meditação, que favorece o pensamento filosófico. Fedro, depois de passar a manhã estudando com Lísias, saiu para caminhar, para espairecer, para filosofar.

Na história da filosofia são muitos os filósofos caminhantes. Um dos primeiros exemplos, ainda na Antiguidade, são os peripatéticos, discípulos de Aristóteles, que caminhavam ao ar livre, durante as preleções com seus mestres.

Mais recentemente vamos encontrar em Rousseau outro amante das caminhadas. Sempre caminhou, conforme conta no texto “Meu retrato”: “Nunca faço nada senão quando estou a passeio no campo, que é meu gabinete; a aparência de uma mesa, do papel, e dos livros me dá tédio, o aparato do trabalho me desanima, se me sento para escrever não encontro nada e a necessidade de ter uma mente inteligente me leva a perdê-la”.

Outro caminhante notável foi Nietzsche. Caminhando até oito horas por dia, nas trilhas e montanhas da aldeia de Sils-Maria, o filósofo elaborou ali os seus principais livros. “Tudo, a não ser por algumas linhas, foi pensado durante os trajetos e rabiscado a lápis em seis caderninhos”, disse Nietzsche, em uma carta publicada no livro “O Viajante e sua Sombra”.

Quem também amou a natureza e as caminhadas foi o filósofo americano David Henry Thoreau. Pioneiro nas lutas em defesa da natureza, Thoreau escreveu, entre outros livros, “Walden” ou “ A Vida nos Bosques”; A Desobediência Civil” e é o autor do primeiro tratado filosófico sobre a caminhada: “Caminhando”.

Thoreau morou por dois anos em um bosque, à beira do lago Walden, em Massachusetts, nos Estados Unidos e esse foi um ato filosófico, segundo o escritor Frederic Gross. “Lá viveu por dois anos, sozinho, em perfeita autossuficiência, em meio às árvores, à beira do lago: capinando a terra, passeado, lendo, escrevendo“. Foi preso em sua cabana, no ano de 1846, por não pagar imposto, surgindo daí o livro “A Desobediência Civil”.

Há também aqueles amantes das caminhas urbanas. Sócrates passou a vida caminhando pelas ruas de Atenas, Baudelaire flanava pelas ruas de Paris e Kant fazia a sua lendária caminhada pelas ruas de Königsberg, onde nasceu e morreu. Sempre no mesmo horário e no mesmo trajeto, o passeio kantiano era uma caminhada metódica, metafísica.  Kant ficou conhecido como “o relógio de Königsberg”, tal a regularidade de suas caminhadas. Para saber mais veja o livro “Caminhar, uma filosofia”, de Frederic Gros.

O que é o esclarecimento?

Em abril de 1783 o jornal germânico Berlinische Monatschrift perguntava: O que é o esclarecimento? Diversas respostas foram enviadas, mas foi um ano depois, em dezembro de 1784, que o filósofo Immanuel Kant responderia a questão com um brevíssimo ensaio, que no entanto ficou famoso e teve o maior impacto dentre todas as respostas. Abaixo segue o texto na íntegra.

O filósofo alemão Immanuel Kant

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.

A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçarme eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes, em seguida, o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro.

É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura. Continuar lendo

Niilismo e o mal-estar da cultura contemporânea

“O niilismo”, do filósofo italiano Franco Volpi

Na 5ª edição do Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, publicada no Brasil em 2007, pela Editora Martins Fontes, o termo niilismo tem o seguinte significado: “termo usado na maioria das vezes com intuito polêmico, para designar doutrinas que se recusam a reconhecer realidades ou valores cuja admissão é considerada importante”.

O dicionarista exemplifica citando Hamilton e Nietzsche:

“Assim, Hamilton usou esse termo para qualificar a doutrina de Hume, que nega a realidade substancial (Lectures on Metaphysics, I, pp. 293-94); nesse caso a palavra quer dizer fenomenismo. Em outros casos, é empregada para indicar as atitudes dos que negam determinados valores morais ou políticos. Nietzsche foi o único a não utilizar esse termo com intuitos polêmicos, empregando-o para qualificar sua oposição radical aos valores morais tradicionais e às tradicionais crenças metafísicas: “O N. não é somente um conjunto de considerações sobre o tema ‘Tudo é vão’, não é somente a crença de que tudo merece morrer, mas consiste em colocar a mão na massa, em destruir. (…) É o estado dos espíritos fortes e das vontades fortes do qual não é possível atribuir um juízo negativo: a negação ativa corresponde mais à sua natureza profunda” (Wille zurMacht, ed. Krõner, XV, § 24)

Na 6ª edição do Dicionário o verbete foi expandido pelo professor e filósofo italiano Franco Volpi (FV), e o termo niilismo passa ter o seguinte sentido: “Este termo – do latim nihil – indica em geral uma concepção ou uma doutrina em que tudo o que é – os entes, as coisas, o mundo em particular os valores e os princípios –  é negado e reduzido a nada”.

Neste novo verbete, o professor Volpi também destaca a contribuição de Nietzsche para o desenvolvimento do tema. Mas o que é propriamente o niilismo para Nietzsche? Ao fazer ele mesmo a pergunta, Nietzsche responde: “Niilismo: falta-lhe a finalidade. Carece de resposta à resposta “para que?’ Que significa o niilismo? Que os valores supremos se desvalorizam” (VIII, 11,12).

Em seguida o professor Volpi comenta:

“Niilismo é portanto, o processo histórico durante o qual os supremos valores tradicionais – Deus, a verdade, o bem, perdem a valor e perecem. Tal processo é o traço mais profundo que caracteriza a história do pensamento europeu como história de uma decadência: o seu ato originário é a fundação da doutrina dos dois mundos por obra de Sócrates e Platão, vale dizer, a postulação de um mundo ideal, transcendente, em si, que, como mundo verdadeiro, é superior ao mundo sensível considerado como mundo aparente. Posta esta dicotomia que divide o ser em dois, está dada com ela a condição pelo qual o mundo verdadeiro, ideal, pede o valor e se desvaloriza até ser destruído e anulado”.

Para registrar a história do niilismo-platonismo, o professor Volpi menciona o texto “Como o mundo verdadeiro de tornou afinal uma fábula“, publicado no “Crepúsculo dos ídolos”, em que Nietzsche resume, em seis capítulos, a derrocada o “mundo verdadeiro” de Platão. Eis o texto:

  1. O mundo verdeiro alcançável ao sábio, ao piedoso, ao virtuoso, – ele vive nele, ele é esse mundo.
    • (Forma mais antiga da Ideia, relativamente inteligente, simples, convincente. Transcrição da proposição “eu, Platão, sou a verdade).
  2. O mundo verdadeiro, por enquanto inalcançável, mas prometido ao sábio, ao piedoso, ao virtuoso (“ao pecador que faz penitência”).
    • Progresso da Ideia: ela se torna mais sutil, mas capciosa, inapreensível, – ele se torna mulher, torna-se cristã…)
  3. O mundo verdadeiro, inalcançável, indemonstrável, imprometível, mas já enquanto pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo.
    • No fundo , o velho sol, mas entrevisto entre neblina e ceticismo; a Ideia se tornou sublime, pálida, nórdica, konigs-berguiana.)
  4. O mundo verdadeiro – inalcançável? Em todo caso, inalcançado. E enquanto inalcançado, também desconhecido. Por conseguinte, também não é consolador,redentor, obrigatório: Para o que algo desconhecido poderia nos obrigar?…
    • (Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. Canto de galo do positivismo.)
  5. O “mundo verdadeiro” – uma Ideia que não é mais útil pra nada, que nem mesmo obriga, – uma Ideia que se tornou inútil, supérflua, por conseguinte, uma Ideia refutada: eliminemo-la!
    • (Dia claro; café da manha; retorno do bon sens e da jovial serenidade; vergonha de Platão; ruido infernal de todos os espíritos livres.)
  6. Abolimos o mundo verdadeiro: Que mundo restou? Talvez o mundo aparente? … Mas não! com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente!
    • (Meio-dia: Momento do mais curta sombra; Final do mais longo erro; Ponto culminante da humanidade; INCIPIT ZARATHUSTRA [Zaratusta começa].)

Depois de registrar a história do conceito, pelas palavras de Nietzsche, o professor Volpi conclui:

“A presença assim difundida do niilismo – palavra até há pouco tempo reservada a poucas vanguardas – permite entender que ele é a expressão de um profundo mal-estar da cultura contemporânea, que no plano histórico-social é acompanhado pelos processos de secularização e racionalização, ou seja, de desencanto e estilhaçamento da nossa imagem do mundo, e sobre o plano filosófico provou a disseminação do relativismo e de ceticismo em relação às visões de mundo e aos valores últimos. Seja qual for a atitude assumida diante dele, de aceitação ou de rejeição, qualquer um pode ver quanto a história do século XX encheu este termo, outra tão abstrato, “de substância, de vida vivida, de ações e de dores (E. Jünger).

Professor Franco Volpi

O professor Franco Volpi, responsável pela redação do verbete, nasceu em Vicenza, na Itália, em 1952, onde faleceu em 2009.  Filósofo, professor de história da filosofia, é autor de várias obras, entre quais “Niilismo”, publicado em português por Edições Loyola. Assim como Camus, morreu aos 47 anos de forma trágica: foi atropelado quando andava de bicicleta.

Bibliografia

Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia. 6º ed., São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2012.

Nietzsche, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com o martelo. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014.

Volpi, Franco. O niilismo. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1999

O absurdo na vida de Camus

Alberto Camus, escritor franco-argelino.

Camus, que nasceu na Argélia, entre a miséria e o sol, teve uma vida marcada pelo absurdo, filosófico e existencial. O seu primeiro confronto com o destino, com o absurdo desta vida, foi, paradoxalmente, um encontro com a morte, a morte do pai. A morte do pai é sempre dolorosa, mas para uma criança é uma ausência sem sentido, que marca para sempre, um verdadeiro absurdo.

Mais adiante um outro absurdo: a tuberculose, aos 17 anos, na força da juventude, obrigando-o a abandonar sonhos e paixões, como o futebol. A tuberculose, de uma certa maneira, moldou a sua vida: não lhe permitiu a carreira de professor, como inicialmente planejado; condicionou a escolha de alguns lugares onde morou e trouxe uma certa pressa para a sua vida.

Com uma expectativa de uma vida curta, em razão da tuberculose, tudo se tornou urgente e isso se refletiu na sua precoce produção literária e filosófica. “A vida é curta e é pecado perder tempo”, diria Camus, em “O Avesso e o Direito”, o seu primeiro livro, escrito aos 22 anos.

Sobre esta questão assim se expressou o filósofo Michel Onfray, em entrevista à Revista Cult, nº 170, quando perguntado se a descoberta da tuberculose, aos 17 anos, havia modificado a visão de mundo de Camus:

“Sim. Não é possível alguém descobrir aos 17 anos que terá uma vida curta e decadente sem encarar de maneira particular sua presença no mundo, sem se dar conta de sua natureza trágica e absurda. Não podemos entender ‘O Mito de Sísifo” sem colocar em perspectiva esta informação”.

Outro absurdo: tendo nascido entre analfabetos, é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, não por um livro excepcional, mas pelo conjunto da obra. Não deixa de ser um absurdo.

Finalmente, o mais trágico de todos os absurdos, aquele que encerrou sua vida. Absolvido da condenação de morrer pela tuberculose, como estava racionalmente previsto, Camus – cheio de planos, com um novo romance em andamento – encontra a morte de forma inesperada, em um acidente de automóvel. Uma morte súbita, irracional, um verdadeiro absurdo! Assim, não é estranho, portanto, que Camus tenha explorado com tanto talento este tema em sua obra.

A peste é um castigo divino

Justiça seja feita: a peste não é coisa do diabo, ela é coisa de deus, uma das armas prediletas de deus. O diabo, como se vê nos memes que circulam na internet, gosta é de rock e de mulher pelada, quer dizer, de música e do corpo. Lembra daquelas festas em homenagem a Dionísio, lá na Grécia? Eram como o diabo gosta: muita música, poesia, teatro, vinho, mulheres, muitas mulheres, verdadeiras ninfas. Quem sempre aparecia por lá era o sátiro Pã, com seus chifres encaracolados e sua flauta mágica.

Albert Camus ao lado de uma das edições do livro “A Peste”

Quem gosta de peste, epidemias, pragas, essas coisas, é deus. Há muito tempo deus usa a peste contra os seus inimigos, como fez lá no Egito, para derrotar o faraó, considerado seu inimigo, porque impedia a saída do seu povo daquelas terras. Naquela época deus usou várias armas: primeiro transformou a água do rio Nilo em sangue e depois lançou outros flagelos, como a  invasão de rãs, piolhos, moscas, morte do gado, chagas, chuva de pedras, nuvens de gafanhotos, trevas e morte dos primogênitos. Foi um horror!

Em outra ocasião, mais recentemente, na cidade de Orã, deus usou uma praga terrível, que matou milhares de ratos e centenas de homens, mulheres e crianças. E o que é pior: a cidade ficou muitos meses sitiada, com o porto fechado e seus habitantes não podiam entrar e nem sair. Um pouco parecido como que está acontecendo nos dias de hoje, em que as pessoas, por ordem do governo, estão em quarentena e não podem sair para estudar, para passear e nem mesmo para trabalhar.

HOJE, A VERDADE É UMA ORDEM

O padre Paneloux, jesuíta, “defensor ardoroso de um cristianismo exigente, igualmente distanciado da libertinagem moderna e do obscurantismo dos séculos passados”, viveu em Orã naqueles dias e em um sermão realizado com a catedral lotada de fiéis e curiosos, apontou a origem divina da peste e o caráter punitivo do flagelo.

No sermão o padre explicou que há muitos séculos, no tempo em que Jesus ainda andava entre nós, mas antes de começar a fazer seus milagres, Deus havia exortado os homens, pela palavra de um parente de Jesus, João Batista, que pregava no deserto: “arrependei-vos, enquanto é tempo. Endireitai as suas veredas”.

Mas os homens fizeram ouvidos moucos e consideraram que a visita dominical à catedral fosse suficiente para agradar a Deus. Mas, não: era preciso o arrependimento dos pecados. Depois de muito tempo, passados muitos séculos de espera, Deus, na sua imensa bondade e misericórdia,  perdeu a paciência. E fez como já fizera outras vezes, na época do Dilúvio, no Egito, em Sodoma e em tantas outras cidades onde imperou o pecado: recorreu aos seus flagelos, as suas pragas, para tocar o coração do homem.

O sermão do padre Paneloux está registrado em um livro do escritor A. Camus, o argelino vencedor do Prêmio Nobel de 1957 e que, por uns tempos, viveu em Orã. O sermão começa com uma acusação gravíssima: “Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes”. Transcrevemos em seguida as palavras do padre Paneloux, que citou o texto do êxodo relativo a peste do Egito e disse:

«A primeira vez que este flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos e a peste o faz então cair de joelhos. Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditais sobre isto e caí de joelhos.”

Paneloux endireitou-se então, respirou profundamente e continuou, num tom mais veemente:

“Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem temê-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que o joio se separe do grão. Haverá mais joio que grão, mais chamados que eleitos e essa desgraça não foi desejada por Deus. Por longo tempo, este mundo compactuou com o mal, repousou na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem, todos se sentiam fortes. Chegado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar se levar, a misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isto não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na sua eterna esperança, acaba de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste!»

Ao fim deste longo período, o padre Paneloux parou, com os cabelos caídos sobre a fonte, o corpo agitado por um tremor que as mãos comunicavam ao púlpito, e prosseguiu, mais surdamente, mas em tom acusador:

Sim, chegou a hora de refletir. Pensastes que vos bastaria visitar Deus aos domingos para ficardes com vossos dias livres. Pensastes que algumas genuflexões pagariam suficientemente o vosso desleixo criminoso. Mas Deus não é fraco. Essas atenções espaçadas não bastavam à sua ternura devoradora. Ele queria ver-vos mais tempo, é a sua maneira de vos amar que é, a bem dizer, a única maneira de amar. Eis por que, cansado de esperar a vossa vinda, deixou que o flagelo vos visitasse, como visitou todas as cidades do pecado desde que os homens têm história. Sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, Faraó e Job e também todos os malditos. E, como esses o fizeram, é um olhar novo que lançais sobre os seres e as coisas, desde o dia em que esta cidade fechou os seus muros em torno de vós e do flagelo. Sabeis agora, finalmente, que é preciso chegar ao essencial.”

 “Muitos dentre vós, bem o sei, perguntaram a si próprios aonde quero chegar. Quero fazer-vos chegar à verdade e ensinar-vos a vos regozijar, apesar de tudo o que vos disse. Passou o tempo em que os conselhos, uma mão fraterna eram os meios de vos guiar para o bem. Hoje, a verdade é uma ordem”. 

Ler é uma atividade de formação e transformação

O filósofo lendo, de Rembrandt

Segundo Hadot, ler é um exercício espiritual e nós devemos aprender a ler, isto é, “parar , libertarmo-nos de nossas preocupações, voltar a nós mesmo, deixar de lado nossas buscas por sutilezas e originalidade, meditar calmamente, ruminar, deixar que os textos falem a nós”.

Hadot diz ainda que a leitura é um exercício espiritual dos mais difíceis e cita Goethe:

“As pessoas”, diz Goethe, “não sabem quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Precisei de oitenta anos para tanto e sequer sou capaz de dizer se tive sucesso” (Goethe, “Entretiens avec Eckermann”, 24 de janeiro de 1830).

Ainda sobre os exercícios espirituais, diz Hadot:

“É nas escolas helenísticas e romanas de filosofia que o fenômeno é mais fácil de observar. Os estoicos, por exemplo, declaram-no explicitamente: para eles, a filosofia é um “exercício”. A seus olhos, a filosofia não consiste no ensino de uma teoria abstrata, ainda menos na exegese de textos, mas numa arte de viver, numa atitude concreta, num estilo de vida determinado, que engloba toda a existência. O ato filosófico não se situa somente na ordem do conhecimento, mas na ordem do “eu” e do ser: é um progresso que nos faz ser mais, que nos torna melhores. É uma conversão que subverte toda a vida, que muda o ser daquele que a realiza. Ela o faz passar de um estado de vida inautêntico, obscurecido pela inconsciência, corroído pela preocupação, para um estado de vida autêntico, no qual o homem atinge a consciência de si, a visão exata do mundo, a paz e a liberdade interiores”

Pierre Hadot (1922/ 2010) foi um filósofo, historiador e filólogo francês, especialista em filosofia do período helenístico e, principalmente, sobre o platonismo. Pierre Hadot recupera, em sua obra, a ideia da filosofia como um modo de vida. Ele é considerado um dos símbolos da intelectualidade francesa, influenciando Michel Foucault. Filólogo e filósofo foi diretor da École des hautes études en sciences sociales e professor no Collège de France, onde ocupou a cadeira de História do Pensamento Grego e Romano, consagrando-se professor honorífico.

Estudo

Raul Branco, estudante do esoterismo, com vários livros publicados, comenta sobre o valor da leitura e do estudo, no capítulo 20 do livro “Os ensinamentos de Jesus e a tradição esotérica cristã” (Editora Pensamento, 1999, p. 218).

“Mas a leitura não é unicamente uma fonte de conhecimento. Todo indivíduo que se debruça sobe uma obra séria a respeito de assuntos espirituais sabe, por experiência própria, que durante o período de estudo cria-se uma vibração sutil que tende a dirigir os pensamento para o alto. Como a vida espiritual é uma questão de mudança vibratória, em que a atenção do aspirante é direcionada das vibrações groseiras para as vibrações elevadas, o estudo presta-se maravilhosamente a este propósito”.

“O estudo também pode favorecer o desenvolvimento da intuição. Muitos estudiosas já tiveram a experiência de ‘insights’ intuitivos durante o estudo de assuntos em que estavam profundamente empenhados. Essas percepções são bastante comuns a cientistas, pesquisadores, filósofos e mesmo poetas e artistas, sendo o resultado do mergulho profundo nas questões a que se dedicam, pois quando a menta está totalmente concentrada, num determinado momento consegue ser transcendida, alcançando-se assim, o plano intuitivo da verdade pura”.

Raul Branco conclui o seu artigo citando o Apocalipse, atribuído a João:

“E a voz que eu do céu tinha ouvido tornou a falar comigo, e disse: Vai, e toma o livrinho aberto da mão do anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra.

E fui ao anjo, dizendo-lhe: Dá-me o livrinho. E ele disse-me: Toma-o, e come-o, e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como mel.

E tomei o livrinho da mão do anjo, e comi-o; e na minha boca era doce como mel; e, havendo-o comido, o meu ventre ficou amargo”. (Apocalipse 10:8-10).

Pensar por si mesmo

Caricatura de Arthur Schopenhauer, por Wilhelm Busch

O filósofo alemão Schopenhauer, no livro “A arte de escrever“, adverte, no entanto, que a leitura não é um substituto do pensamento próprio e por isso deve ser seguida pelo ato de pensar, de pensar por si próprio.  Segundo o filósofo, a leitura de muitos livros pode servir apenas para mostrar quantos caminhos falsos existem e como uma pessoa pode ser extraviada se revolver segui-los. “Mas aquele que é conduzido  pelo gênio, ou seja, que pensa por si mesmo, que pensa por vontade própria, de modo autêntico, possui a bússola para encontrar o caminho certo” 

Pensar por si próprio, segundo se depreende das lições de Schopenhauer, significa pensar de modo próprio, autêntico, mediante o desenvolvimento de um sistema de pensamento, que vai crescendo e se desenvolvendo com o tempo, com as suas meditações, com os seus encontros com a verdade. 

Ter pensamentos próprios implica ainda em desenvolver capacidades como a imaginação,  a memória, o raciocínio, a oratória, a retórica, entre outros instrumentos mentais que auxiliam a formação do pensamento.  A posse do seu próprio pensamento vai permitir a sua exposição de forma clara e espontânea, sem a muleta das anotações, dos power-points e outros recursos tecnológicos usados muitas vezes para substituir e ou mesmo suprimir os pensamentos próprios.

Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria, adverte o filósofo alemão. “Nada é mais é prejudicial ao pensamento próprio – que sempre aspira desenvolver um conjunto coeso, um sistema, mesmo que não seja rigorosamente fechado – do que uma influência muito forte de pensamentos alheios, provenientes da leitura contínua”.

Bibliografia

  • Branco, Raul. Os ensinamentos de Jesus e a tradição esotérica cristã. São Paulo. Editora Pensamento, 1999.
  • Hadot, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo, Editora É Realizações, 2014.
  • Schopenhauer, Arthur. A arte de escrever. Tradução, prefácio e notas de Pedro Sussekind. L&PM, 2010

Borges: leitura e memória

A Biblioteca de Babel: universal, infinita, interminável.


Jorge Carrión, escritor espanhol, ao tratar da misteriosa relação entre a memória e a leitura, recomenda, no seu mais recente livro – Livrarias: uma história da leitura e de leitores (Bazar do Tempo, 2018) – três contos do escritor argentino Jorge Luis Borges: “A Biblioteca de Babel”, de 1941; “Funes, o memorioso”, de 1942 e ainda “O Aleph”, publicado em 1945.

Atendendo à recomendação, li os dois primeiros e reli “O Aleph”.  De fato, são contos para quem gosta de livros e dos seus prazeres. A propósito dos prazeres da leitura, Carrión cita também, no seu livro, o slogan da Livraria Foyles, em Londres, estampado na entrada da loja: “Welcome, book lover, ou are among friends”. Em português: “Bem-vindo, amante dos livros, você está entre amigos”.

A Biblioteca de Babel

“A Biblioteca de Babel” é um clássico do grande mestre argentino.  Neste conto Borges mostra que o Universo é, na verdade, uma grande biblioteca, infinita, interminável. “O Universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente”.

Essa imensa biblioteca, que Borges viu em 1941, antecipou o futuro, antecipou o que vivemos hoje, com o google: “Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: em algum hexágono. o Universo estava justificado, o Universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança”.

“O Aleph”, por sua vez, revela a existência de um ponto, um pequeno círculo, situado em um sótão, na casa de uma mulher outrora desejada, Beatriz Elena Viterbo, localizada na rua Garay, em Buenos Aires. Este pequeno circulo – o Aleph -, revela, para quem tem o privilégio de olhar, nada mais, nada menos que o próprio Universo.

“O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres)…”

“O Aleph”, segundo o próprio Borges, foi influenciado pelo conto “O ovo de cristal”, do escritor britânico H. G. Wells, publicado em 1899.

Outro conto fantástico: “Funes, o memorioso”. Conta a história de Irineu Funes, um rapaz que, após um grave acidente, na cidade em que morava (Fray Bentos, no Uruguai), ficou paralítico, sem esperança, mas que, a partir de então, adquiriu uma memória prodigiosa. Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis, o que levou Funes a considerar a imobilidade um preço barato.

Culto aos livros

Borges trata do tema em outros momentos: no livro “Outras Inquisições”, de 1952, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2007, Borges traz o curto ensaio “Do culto aos livros”, tema recorrente na obra do bibliotecário.

Em um trecho do ensaio, Borges afirma: “O fogo, numa das comédias de Bernard Shaw, ameaça a biblioteca de Alexandria; alguém exclama que vai arder a memória da humanidade e César diz a ele: ‘Deixe -a arder. É uma memória de infâmias‘.”

Borges oral

Este tema é retomado em 1978, em uma série de palestras proferidas na Universidade de Belgrano. “Quando a Universidade de Belgrano me convidou para dar cinco aulas, escolhi temas com os quais o tempo me consubstanciara. O primeiro, o livro, este instrumento sem o qual não posso imaginar minha vida e que não é menos íntimo para mim do que as mãos ou os olhos”. Esta palestra está publicada no livro “Borges, Oral & Sete Noites” (Companhia das Letras, 2011).